Um grupo técnico formado por especialistas de diferentes áreas do governo e do setor aeroespacial foi criado para estudar a viabilidade de o Brasil desenvolver seu próprio sistema de geolocalização por satélite. O objetivo é avaliar os riscos e benefícios de depender de sistemas estrangeiros de posicionamento, navegação e tempo — como o norte-americano GPS — e propor alternativas estratégicas para o país.

A iniciativa, oficializada pela Resolução nº 33 do Comitê de Desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro, foi assinada pelo ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Marcos Antonio Amaro dos Santos. O grupo terá 180 dias, a contar de 14 de julho, para apresentar um relatório com diagnósticos e recomendações.

Segurança e independência tecnológica

“Vamos procurar entender os gargalos, as dificuldades, os prós e contras de desenvolvermos um sistema desses”, explicou Rodrigo Leonardi, diretor de Gestão de Portfólio da Agência Espacial Brasileira (AEB), uma das 14 instituições que compõem o grupo. Segundo ele, embora o Brasil historicamente tenha priorizado o uso de satélites para monitoramento territorial, chegou o momento de discutir a possibilidade de criar um sistema próprio de navegação.

“Caso decidamos avançar, será preciso um nível de investimento muito superior ao atual. É uma iniciativa extremamente complexa, que exige capacidade tecnológica para projetar, fabricar e lançar satélites capazes de transmitir sinais precisos da órbita para a Terra”, disse Leonardi.

Coincidência com tensões comerciais

A criação do grupo coincidiu com recentes tensões entre Brasil e Estados Unidos, incluindo o anúncio de tarifas de importação de 50% para produtos brasileiros e boatos nas redes sociais sobre uma possível restrição ao sinal do GPS norte-americano no país. Leonardi, no entanto, nega qualquer relação com esses eventos.

“Já discutíamos o tema há tempos. A criação do grupo é anterior a esses ruídos nas redes. Além disso, não houve nenhum comunicado oficial dos EUA sobre restrição ao GPS no Brasil, e mesmo que isso ocorresse — o que é altamente improvável — há alternativas ao sistema americano”, afirmou.

Além do GPS

Leonardi esclarece que o termo correto para se referir a esse tipo de serviço é GNSS (Sistema Global de Navegação por Satélite), e não apenas GPS, que é o sistema dos EUA. Atualmente, existem outras constelações de satélites com cobertura global, como o russo Glonass, o europeu Galileo e o chinês BeiDou. Há ainda sistemas regionais, como o indiano NavIC e o japonês QZSS, que também operam no Brasil.

Apesar de os EUA tecnicamente poderem limitar ou degradar o sinal do GPS, isso traria consequências globais. “A aviação civil, empresas americanas que operam aqui e até países vizinhos seriam afetados. Isso teria impactos comerciais e diplomáticos significativos”, afirmou.

Multiconstelação e autonomia estratégica

Geovany Araújo Borges, professor da Universidade de Brasília (UnB) e coordenador do Laboratório de Automação e Robótica (LARA), concorda que, embora possível, uma restrição ao GPS no Brasil é improvável. Ele destaca que a maioria dos dispositivos modernos, como celulares e sistemas de navegação, já opera com tecnologia “multiconstelação”, ou seja, é capaz de captar sinais de vários sistemas simultaneamente.

Segundo Borges, isso reduz os riscos imediatos de interrupções, mas não elimina a dependência estratégica. “Mesmo com alternativas ao GPS, hoje o Brasil depende de sistemas de outras nações em um setor sensível. Precisamos ter soberania tecnológica. Desenvolver nosso próprio sistema, ainda que regional, é essencial para a defesa e pode gerar impactos positivos em áreas como saúde, indústria e agricultura”, afirmou.

Desafio é o financiamento

Para Borges, o principal obstáculo não é a falta de profissionais qualificados, mas sim o financiamento de um projeto de longo prazo. “Temos pessoal capacitado. O problema é garantir recursos consistentes, desenvolver nossa indústria de microeletrônica e transformar essa proposta em política de Estado. Isso exige visão estratégica, compromisso contínuo e investimentos sustentados. Por isso, ainda que tardia, a criação deste grupo técnico é uma iniciativa bem-vinda”, concluiu.