Os dados do Censo Demográfico 2022, divulgados pelo IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística na última sexta, 27, mostraram Santa Catarina como principal destino de migrantes interestaduais no Brasil. Segundo o levantamento, o território recebeu 503.580 novos moradores, entre 2017 e 2022. Ao descontar os índices de emigrantes, ou seja, pessoas que deixaram o território no mesmo período, o ganho populacional foi de 354 mil pessoas, um acréscimo de 4,66%. Para especialistas, o crescente aumento populacional impõe às cidades catarinenses desafios tanto no planejamento urbano quanto na implementação de políticas públicas.
O pesquisador da Universidade do Vale do Itajaí (Univali), professor Marcus Polette, especializado em gestão e governança da zona costeira e planejamento regional e urbano, afirma que o crescimento demográfico acelerado na região de Itajaí, acentuado também pela migração, tem contribuído para o processo de conurbação dos municípios.
“A região de Itajaí registrou um aumento populacional significativo nos últimos anos. Isso tem contribuído para um processo rápido de desenvolvimento e urbanização e, nesse contexto, um dos grandes desafios que se impõe é o da moradia. Observamos que os aluguéis estão cada vez mais caros. O fato dessa infraestrutura estar centrada, principalmente, entre a BR 101 até a porção do mar, leva a escassez de terrenos nestas áreas acentuando a verticalização urbana.”, aponta.
O especialista também cita o preço dos imóveis na região urbanizada de Itajaí como fator decisivo para o desenvolvimento de condomínios nos municípios do entorno da cidade. Uma dinâmica que seria responsável por um movimento pendular entre os municípios intensificando o processo de conurbação na região. Na busca por terras mais baratas para atender a população de baixa renda, esclarece o professor, o mercado imobiliário vem expandindo para bairros e municípios cada vez mais distantes dos centros urbanos o que, muitas vezes, resulta na construção de empreendimentos de grande porte em lotes relativamente pequenos.
“Isso causa adensamento rápido em áreas sem infraestrutura básica, como saneamento, moradias construídas em áreas de planícies fluviais – a exemplo do bairro Santa Regina, em Itajaí – que estão mais vulneráveis ao alto volume de chuvas. Sabemos que numa situação de inundação, a população de baixa renda é a mais afetada, pois costuma ser a primeira a ser atingida.”, afirma.
Polette reitera que o contexto de urbanização sem planejamento adequado escancara a desigualdade social, um problema social que distancia ricos e pobres e, neste contexto, resulta nos mais abastados ocupando áreas com melhor infraestrutura, enquanto pessoas de menor poder econômico vivem na periferia, enfrentando dificuldades com saneamento básico e mobilidade urbana.
“A situação em relação ao planejamento urbano na região da Foz do Rio Itajaí é bastante complexa. Os planos diretores atuais têm pouca participação popular sendo, majoritariamente, influenciados pelos setores imobiliário e da construção civil.”, cita.
Públicos diversos
Pesquisador da Univali em áreas como políticas públicas, governança e cidadania socioambiental e transnacionalidade, o professor Ricardo Stanziola Vieira, chama a atenção para a existência de diferentes grupos de migrantes no Estado.
“Quando olhamos sobretudo para a Região Litorânea, do Centro-Norte Catarinense, observamos dois públicos principais de migrantes. Tem aquele que busca condições de sobrevivência e moradia de baixo custo. No entanto, essa região também é escolhida por migrantes investidores, que chegam atraídos por qualidade de vida. Para qual destes públicos nós estamos olhando, em termos de geração de política pública?”
Na avaliação do professor Vieira, a partir da identificação e análise de dados destes novos moradores, tais como renda e origem, os municípios podem compreender melhor a diversidade de perfis de migrantes presentes na região e, desta forma, formular políticas públicas mais eficazes a médio e longo prazo. O especialista ressalta que estas ações devem ser direcionadas para atender as necessidades de ambos os grupos, evitando a discriminação e promovendo a inclusão social.
“Já existe política pública para atender o migrante, mas ela ainda se mostra seletiva. Existem investimentos no urbanismo de áreas consideradas nobres, no alargamento de praias, na preocupação com o saneamento, no marketing focado em atrair moradores que detém maior poder aquisitivo e que, claramente, elevam a arrecadação de IPTU destes municípios. Mas será que estas ações atendem as necessidades do perfil migrante que mais engrossa a estatística de aumento demográfico? É necessário implementar política pública também para o migrante de baixa renda, aquele que ocupa a periferia.”, observa o especialista.
Além disso, o pesquisador da Univali também considera importante analisar dados da migração internacional, considerando fatores como conflitos, crises econômicas e ambientais que impulsionam a vinda desses povos para a região. “A presença de imigrantes de diversas origens em Santa Catarina, como a África e a Venezuela, também exige uma reflexão sobre as políticas públicas necessárias para atender às suas necessidades, que são mais específicas.”, pontua.
Para os próximos anos, o professor também cogita maior aumento na migração de baixa renda, também motivado por questões como crises climáticas e econômicas, inclusive de âmbito internacional, e o aumento do desemprego em função da substituição do trabalho humano pela automação e a inteligência artificial.
Planejamento regional
Na visão do professor Polette, a solução para as questões de ocupação urbana passa pela implementação de um planejamento regional, idealmente um zoneamento ecológico-econômico liderado pelo governo estadual, que estabeleça diretrizes para os próximos 10 anos, incluindo eixos de desenvolvimento, mobilidade e uso do solo.
“A região, que na prática já apresenta características de uma metrópole, carece de uma estrutura institucional que a enxergue como tal, e a associação de municípios local não está sendo suficiente. É crucial um plano de uso e ocupação do solo integrado ao plano de mobilidade, além de direcionar a economia local, forte em atividades marítimas, para um modelo de ‘economia azul’, muito mais sustentável.”, justifica.
Outro fator, na visão do professor Polette, seria a necessidade de planejamento regional para lidar com as mudanças climáticas, especialmente em municípios costeiros do Estado. Polette chama a atenção para a necessidade urgente de políticas públicas de adaptação e planos diretores participativos e que, sobretudo, considerem a vulnerabilidade climática.
No contexto do aumento populacional, o professor reafirma que os altos preços dos imóveis concentrados em áreas privilegiadas, agravados pela especulação imobiliária, dificultam o acesso à moradia para as pessoas de baixa renda que migram para Santa Catarina, fator que leva a outros problemas sociais.
“O aumento da imigração para a região de Itajaí, por exemplo, está gerando um crescimento populacional que sobrecarrega a infraestrutura atual. A falta de moradia na cidade, leva as pessoas a buscarem um teto nos municípios vizinhos, que também não contam com planejamento para acolher estas pessoas com qualidade de vida. Esse movimento desordenado favorece a expansão de periferias e comunidades urbanas que no futuro podem apresentar problemas graves de infraestrutura, segurança e adensamento populacional. O abastecimento de água e mobilidade urbana, com foco em carros em vez de transporte público, são mais pontos que precisam de atenção urgente do poder público.”, sugere.
O professor Ricardo Stanziola também defende uma atuação maior e mais planejada, por parte do Estado e da União, para atender as necessidades de ocupação urbana e políticas públicas, que são impostas aos municípios pelo fluxo migratório.
“Por ausência de uma atuação mais organizada do Estado e da União, os municípios estão sobrecarregados. O gestor público municipal é pressionado para atrair investimentos e gerar crescimento econômico, ao mesmo tempo em que precisa prover serviços públicos para atender o aumento populacional decorrente disso. Neste contexto, o planejamento é essencial para que seja possível atender o aumento nas demandas de saúde, moradia, educação, segurança pública e infraestrutura geradas pelo aumento populacional.”, afirma Vieira.
Visão a longo prazo
O docente e pesquisador da Univali, professor Rafael Burlani, também estuda temas como políticas públicas para a sustentabilidade e gestão ambiental. Sobre o aumento populacional em Santa Catarina, decorrente da migração entre os estados da federação, a análise do especialista é de preocupação com a sustentabilidade desta situação no longo prazo.
“Os aspectos econômicos, da qualidade de vida e do desenvolvimento sustentável são importantes, mas acredito que também precisamos olhar para estes dados migratórios e compreender o que está motivando tantas pessoas a saírem dos seus estados e vir para cá.”
Burlani argumenta que a busca por qualidade de vida e oportunidades no território catarinense também reflete o esgotamento dos modelos de desenvolvimento já adotados em alguns estados de origem destes migrantes, tais como São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Na visão do especialista, parte significativa desta mudança ocorre porque os estados de origem não estão mais conseguindo entregar dignidade de vida à sua população.
“No passado, parte destes estados optaram por um modelo de desenvolvimento baseado no extrativismo, no qual se remove tudo que consegue – desde uso do solo, recursos ambientais até a própria cultura local. Vimos que alguns destes estados hoje enfrentam dificuldades, muitos estão endividados e tem pouca condição de investimento e melhoria da qualidade da sua população, seja por infraestrutura, seja por inovação ou atração de novos negócios. Neste contexto, quando os recursos estão exauridos, o caminho para a população é buscar novos espaços e oportunidades. Observamos que Santa Catarina torna-se um estado atrativo, tanto pela razão econômica, quanto pelo fenômeno da litoralização.”, afirma.
Para o estudioso, para não repetir os mesmos erros Santa Catarina precisa de políticas públicas que pensem na qualidade de vida a médio e longo prazo. “Precisamos nos organizar agora para que, no futuro, tenhamos condições de sustentar o que essa parcela da população vem buscar hoje aqui em Santa Catarina, que é a dignidade de vida, oportunidades de trabalho e estudo, e de se realizar enquanto pessoa, enquanto cidadão.”, recomenda.